Sem cultura não há cultura

Enviado por  /Mercado e Cultura

No início de 2012, quando o Catarse estava completando um ano no ar, lançamos uma série de reportagens neste Cultura e Mercado que mostravam as dificuldades para conseguir que pessoas físicas apoiassem projetos culturais. Quase três anos depois, o cenário não parece ter mudado muito.
Especialmente no que diz respeito às doações via leis de incentivo. Pela Lei Rouanet é possível apoiar iniciativas culturais deduzindo 100% do valor no Imposto de Renda devido, até o limite de 6%, fazendo a declaração no modelo completo. De 10 milhões de pessoas que declaram seu imposto nesse modelo, apenas cerca de 15 mil fizeram doações em 2013.
Um dos maiores problemas é que entender os mecanismos contábeis para a dedução não é simples, e faz muita gente desistir no meio do caminho, ainda que possa ter benefícios depois. “As pessoas consideram um assunto chato, e explicar como calcular o uso do imposto não é tarefa fácil”, diz Fernando Abbud, sócio-fundador e responsável por projetos e conteúdo no Partio.
O Partio surgiu como uma plataforma para auxiliar pessoas físicas que quisessem doar recursos para projetos culturais via Lei Rouanet. O slogan era “Revertendo imposto em cultura”. Mas teve que ser mudado para “Conquistas culturais”. “Hoje a opção de usar seu imposto é um plus, não a comunicação principal”, explica Abbud. Além das dificuldades no processo de dedução do IR, um dos principais motivos, segundo ele, é que os projetos incentivados em geral têm metas muito altas, e o crowdfunding ainda não está preparado no Brasil para captar esses valores.
“Percebemos também que nosso objetivo como empresa era viabilizar projetos culturais e, para isso, não poderíamos nos prender apenas a um tipo de projeto. É importante também não depender apenas de uma lei para seu negócio acontecer. O Brasil é um país instável, onde as regras do jogo mudam o tempo todo e, por isso, é importante estar preparado para outras formas de captação”, afirma Abbud.
Co-fundador de outra plataforma que nasceu com intenções parecidas, o Quero Incentivar, Leonardo Yu Marins concorda. Para ele, é questão de empoderamento não depender das leis de incentivo. “O Catarse é um grande exemplo de que isso é possível, já que diversos apoios são realizados e muitos projetos interessantes são viabilizados – tudo isso sem o benefício da isenção fiscal.”
Desde 2012, o Quero Incentivar teve 1.549 perfis de proponentes cadastrados e 697 projetos inscritos e ativos, sendo cerca de 80% da área cultural, em diversas leis de incentivo de todo o país. Hoje o site se mantém financeiramente pela criação de editais em conjunto com empresas parceiras. No momento há dois no ar: um cultural, pela Lei do ISS do Rio de Janeiro (inscrições encerradas), e outro esportivo (Lei Federal – IR), cujas inscrições vão até o domingo (7/12).
Marins afirma que a maior dificuldade é a falta de informação sobre a possibilidade de fazer a doação e o receio das pessoas quando o assunto é Imposto de Renda. Por isso, o foco da plataforma mudou e ela está sendo totalmente reformulada, desde design até programação. “Manteremos como uma das funcionalidades principais o fato de ser uma grande vitrine para projetos em busca de captação de um lado, e, de outro, um grande banco de projetos para os interessados em patrocinar”, explica. Junto com os sócios, ele pretende ainda criar uma grande campanha de conscientização sobre os benefícios do mecanismo.
Tecnologia – Se é comum as pessoas pagarem U$$ 1,99 para baixar um aplicativo no celular, por que é tão difícil doar R$ 20 para um projeto cultural? Talvez seja preciso criar uma fórmula em que a doação de R$ 20 seja dividida em 10, diz Octavio Nassur, produtor cultural curitibano, sócio da agência Dance & Concept. Em cerca de 15 dias, ele e mais dois sócios lançarão a plataforma Estilyngue, que pretende inovar no financiamento coletivo via leis de incentivo.
“Sessenta e seis milhões de pessoas compram via internet no Brasil. Ou seja, essas pessoas já estão acostumadas a fazer transação online. Se cada uma doa R$ 2 para um projeto cultural…”, calcula Nassur. Ele acredita que esse tipo de plataforma surge de uma necessidade dos produtores culturais e também dos gestores empresariais. “É preciso alinhar as políticas e as necessidades da empresa e facilitar o encontro com os projetos. É por isso que as empresas criam editais.”
A proposta da Estilyngue é ousada. Com um dos sócios sediado no Vale do Silício, Nassur tem a tecnologia que vai permitir que a doação de pequenos valores – como aqueles cobrados para baixar aplicativos – aconteça de maneira muito simples. Buscaram investir nisso porque a tecnologia, segundo ele, seria a maior dificuldade para que o modelo funcionasse bem.
Depois disso, a comunicação. Em parceria com empresas – O Boticário foi a primeira a fechar, e outras cinco já estão na mira dos idealizadores -, a ideia é criar um sistema de benefícios para a doação, além de oferecer serviços, tutoriais, cursos e palestras para as redes de funcionários e franqueados, possíveis apoiadores e produtores.
Algumas empresas que promovem campanhas para incentivar a doação de seus funcionários o fazem adiantando o valor que as pessoas físicas estariam isentas do Imposto de Renda antes do ano acabar – já que um dos maiores empecilhos é que esse dinheiro não está disponível no fim do ano, o momento de decidir pela doação, no caso da Lei Rouanet. Uma das propostas da Estilyngue é convidar os franqueados de grandes redes, por exemplo, a dar esse tipo de suporte.
Também já estão negociando parceria com o Ministério da Cultura. “Temos uma velocidade de tecnologia que o MinC dificilmente conseguirá ter”, diz Nassur. Segundo ele, a ideia principal é promover a cultura da doação. “A população precisa entender que deve ter autonomia na cultura, porque como é hoje, se o governo decide não dar mais dinheiro, acabou a cultura.”
Cultura da cultura – O advogado Felipe Cabral e Silva, do escritório Cesnik, Quintino & Salinas, acompanhou Nassur em uma reunião nesta semana no MinC. Segundo ele, a postura foi de clara intenção pelo estímulo a iniciativas como essa, seja pela sustentabilidade necessária do modelo público de fomento da cultura, seja pela reconhecida burocracia inerente às instituições públicas quanto à visão, planejamento e principalmente implementação de ferramentas de tecnologia voltadas para a solução de dificuldades estruturais do sistema.
“Essa postura também sugere a necessidade de maior interação entre sociedade e entidades públicas responsáveis pelas diversas políticas públicas, a fim de contribuir e um dia garantir a efetividade dessas políticas. O Brasil passou por transformações sensíveis nos últimos 30 anos e dependerá em grande parte da iniciativa privada em alimentar e colaborar com as entidades públicas as demandas atuais nos diversos segmentos da economia, em especial os mais sensíveis e ainda baseados em mecanismos de fomento”, afirma Silva.
Para ele, burocracia e legislação são gargalos, mas não as principais causas da falta da cultura da doação no Brasil. “Elas dificultam o que na origem não é simples, a cultura da cultura do país”, diz.  O advogado entende que o primeiro aspecto dificultador está relacionado ao apelo da cultura na educação do brasileiro. Ou seja: de que forma o brasileiro se relaciona com a cultura, se é parte inerente à sua formação ou é apenas um produto dentre os vários outros disponíveis para o seu consumo.
Depois, vem o nível de informação das pessoas sobre esse ambiente de leis de incentivo. “Se por um lado as regras não são auto-explicativas – dificuldade inerente à complexidade do sistema tributário brasileiro -, por outro há historicamente uma postura reativa das pessoas no sentido de lidarem com questões de finanças pessoais.”
Num raciocínio de causa e efeito, explica Silva: 1) as pessoas desejam consumir cultura em suas variadas expressões, a preços acessíveis (baseado na renda média desta sociedade); 2) o segmento de cultura não dispõe de estrutura (em termos legais e de organização) necessariamente hábil para favorecer a produção cultural, desde a sua concepção até a sua exibição, o que agrega custos onerosos ao investidor e ao produto final a ser consumido; e 3) como forma de superar essas idiossincrasias, propõe-se que a própria sociedade, entre pessoas e empresas, participe do financiamento ao segmento cultural.
“Levando-se em consideração as deficiências de sinergia entre os elos dessa cadeia, é possível vislumbrar um caminho bastante longo pela frente para atingirmos um ambiente de equilíbrio entre a causa proposta (cultura acessível e de qualidade) e a consequência desejada (baseada em um modelo sustentável)”, conclui o advogado.
Leia mais:
Por uma cultura de doação no Brasil
http://www.culturaemercado.com.br/procultura/sem-cultura-nao-ha-cultura/

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