Morto de forma trágica, documentarista fez filmes complexos a partir de uma premissa simples: escutar histórias de pessoas comuns

Definir o cinema de Eduardo Coutinho como “simples” pode soar mal aos ouvidos de quem acompanhou a trajetória de um dos maiores cineastas da história do Brasil, e que agora lamenta sua trágica morte.
Mas Coutinho era mestre em fazer filmes complexos a partir de uma premissa muito simples: ouvir pessoas – em geral pobres, muitas vezes analfabetos, quase sempre diferentes dele. Sem narração em off, explicação sociológica, opinião de especialista ou artifícios cinematográficos, o maior documentarista do País acreditava que dar voz às pessoas comuns era o bastante.
 

Eduardo Coutinho autografa livro sobre ele no Cinesesc (25/10). Foto: Divulgação
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Em uma época de desconcentração geral, com tantas telas brigando por atenção, Coutinho investiu na simples conversa até o último filme, “As Canções”, de 2010. Sentava-se bem perto dos entrevistados (daí tantos enquadramentos em close) e os ouvia atentamente, sem nunca desviar o olhar.
“A conversa é uma troca que tem de ser feita face a face. Hoje em dia ninguém escuta ninguém, e já é assim há uns 20 anos”, afirmou, durante debate na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro. “Eu realmente escuto as pessoas, e talvez seja por isso que elas falam comigo. Minha vida depende disso. Eu preciso das pessoas – por profissão até.”
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Coutinho fazia perguntas pontuais e importantes, mas nunca preparava roteiros, preferindo seguir apenas hipóteses de trabalho que podiam ou não ser comprovadas. Nunca estourava o cronograma de filmagem graças à pesquisa prévia, uma missão que não acompanhava para que, quando as câmeras fossem ligadas, o entrevistado contasse sua história com a certeza de que o diretor a ouvia pela primeira vez.
“Escolhi ser alimentado pela fala-olhar de acontecimentos de pessoas singulares, mergulhadas na contingência da vida”, escreveu Coutinho, em texto para o catálogo do Festival Cinema du Réel, em 1992, e republicado no livro em sua homenagem lançado no ano passado, com organização de Milton Ohata.

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Eduardo Coutinho em evento da Mostra de Cinema de SP (2013)

“O improviso, o acaso, a relação amigável, às vezes conflituosa, entre os conversadores dispostos, em tese, dos dois lados da câmera – esse é o alimento essencial do documentário que procuro fazer”, completou.
Aberto ao outro
Coutinho começou a carreira na ficção, mas descobriu o documentário durante passagem pelo programa “Globo Repórter”, da TV Globo, nos anos 1970. Durante carreira de mais de quatro décadas, ajudou a transformar o documentário no gênero cinematográfico mais forte do Brasil.
Seu primeiro grande filme, “Cabra Marcado Para Morrer” (1985) simbolizou bem esta transição. Começou nos anos 1960 como ficção (no que seria a reencenação do assassinato de um líder camponês), teve as filmagens impedidas pela ditadura e foi concluído nos anos 1980, após a reabertura política, como um documentário que reencontrava os personagens/atores do projeto inicial.
Coutinho gostava do particular e considerava as ideias gerais “uma tragédia”. Para ele, tentar entender o Brasil pelo cinema previa, como regra, não encarar seus personagens como símbolos de determinados grupos sociais.
Tal convicção resultou em um dos principais traços do cinema de Coutinho: o notável respeito que dispensava a seus personagens, nunca enquadrados em tipos ou vistos com pena ou condescendência. “Como é viver no lixo, bom ou ruim?”, perguntou Coutinho em “Boca de Lixo”, já admitindo a possibilidade de os padrões da sociedade não darem conta da realidade de seus entrevistados.

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“Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho

O mesmo tratamento sem julgamentos foi dado a quem vivia na favela filmada em “Santa Marta”, aos moradores do prédio retratado em “Edifício Master”, aos operários do ABC Paulista que deram seus depoimentos em “Peões”, às mulheres que contaram segredos em “Jogo de Cena”, às pessoas de diferentes trajetórias que falaram sobre a música que marcou suas vidas em “As Canções”.
“Creio que a principal virtude de um documentarista é a de estar aberto ao outro, a ponto de passar a impressão, aliás verdadeira, de que o interlocutor, em última análise, sempre tem razão. Ou suas razões. Essa é uma regra de suprema humildade, que deve ser exercida com muito rigor e da qual se pode tirar um imenso orgulho”, escreveu Coutinho no texto para o Cinema du Réel.
A morte de Coutinho é das mais difíceis de aceitar, tanto pelo modo trágico e inesperado como aconteceu, quanto pela perda irreparável que impõe ao cinema brasileiro. O consolo resta na obra e em uma pérola de sabedoria de um dos entrevistados de “Cabra Marcado Para Morrer”: “Não tem nada melhor que um dia após o outro, e uma noite no meio.”
Fonte : http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2014-02-03/eduardo-coutinho-o-cineasta-que-queria-ouvir.html

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