O processo criativo da cor no cinema

Como funcionam as diferentes etapas de um filme e qual o papel do colorista

Já escrevi pro PapodeHomem alguns textos sobre a importância das cores em fotografia, no cotidiano e no cinema.
Hoje quero falar um pouco sobre o processo criativo da cor no filme e falar da função que mais me fascina no audiovisual: a do colorista.

Bom, todo mundo sabe que o filme nasce a partir de uma história, certo? Uma vez que se elabora um roteiro, o diretor centraliza grande parte das decisões para que esse filme se torne realidade e conte a história da melhor maneira possível. É uma função que basicamente escolhe os caminhos que o filme vai tomar baseada nas especialidades dos outros profissionais envolvidos (departamentos de arte, fotografia, som, efeitos especiais, montagem, etc). Ele basicamente cuida para que nada que apareça na tela seja “gratuito” ou que não faça sentido para o filme. Ou seja, toda decisão adquire uma função narrativa.
Tendo isso em mente e sabendo que boa parte do nosso envolvimento com o cinema vem das imagens, é o diretor que vai alinhar toda a expressão visual do filme, que pode variar de acordo com gênero, autoria do diretor, etc.
A expressão visual de um filme é basicamente aquilo que é dito ao espectador com o que está inserido na imagem. Ou seja, são aspectos sutis que interpretamos sem uma fala sequer.

Para isso, ele trabalha junto com os especialistas de diferentes departamentos para atingir seus objetivos. Por isso, dizemos que o cinema é uma arte coletiva, já que envolve a participação de muitas mentes criativas.
No que diz respeito a cor, temos três funções muito importantes: o diretor de arte, o diretor de fotografia e o colorista.

Direção de arte

Essa é uma função que acontece na pré-produção de um filme (momento de planejamento antes das gravações) e termina na captação.
Um diretor de arte, junto ao diretor, define uma identidade visual do filme no que diz respeito a escolha de locações, cenários, objetos de cena, figurino, maquiagem, etc.
Ele é responsável pelos elementos que vão nos ajudar a imergir no universo onde a história se passa. Com essa escolha na arte, é possível criar “atmosferas”(clima de uma cena específica, por exemplo) e “metáforas visuais” para reforçar o que estamos contando.
Por exemplo, se um personagem se encontra em uma situação de perigo e está tentando se esconder, muito provavelmente ele se encontrará em um lugar muito estreito (que seria a metáfora para algo como “encurralado”) e o ambiente em que ele está terá um clima mais assustador.
É claro que o filme não terá a mesma atmosfera a todo instante, haverão momentos mais leves e momentos mais tensos. É ai que o trabalho dos profissionais responsáveis pela imagem entra: destacar sutilmente essas mudanças e dizer nas entrelinhas o que a história quer nos contar.
Eu adoro a cena de abertura do Delicatessen, ela é um ótimo exemplo para ilustrar essa importância das metáforas visuais e da atmosfera. Pela neblina, a cerca mais rústica, o açougue, os tubos de ar, os jornais rasgados e vários outros objetos, percebemos uma tensão sendo criada com o espaço que se tem.

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Talvez, a função mais importante da direção de arte seja a caracterização de personagens e seu relacionamento com o espaço. É através desse trabalho que vamos entender muito da personalidade deles sem sequer ouvir uma frase do diálogo. Se vemos a casa de um personagem antes de conhecê-lo, podemos tirar muitas conclusões. Ao mesmo tempo, se ele não pertence ao lugar onde se encontra, é bem provável que as cores e texturas do ambiente se distoarão do personagem. São muitas dessas sutilezas que tornam capaz nosso envolvimento em um filme.
Esse frame do filme A Vida Aquática de Steve Zissou mostra perfeitamente o conceito do “estrangeiro” nos filmes. O personagem da Cate Blanchett é uma repórter que não pertence à tripulação e por isso está vestindo um macacão verde-musgo ao invés de azul, branco ou laranja.

É nesse momento de planejamento que se cria, junto ao diretor de fotografia, uma paleta de cores a ser seguida ao longo de toda a realização do filme.
Com a chegada da cor no cinema, o envolvimento emocional que a iluminação e a textura exerciam na época do cinema preto e branco, tornou-se ainda maior. Não significa que uma cor terá o mesmo significado em todos os filmes, assim como ela não possui na vida real. Da maneira como os cineastas trabalham, é possível atrelar diferentes significados às cores com base na vivência dos espectadores e nos objetivos do filme.
Cada obra tem um tema, um tom emocional específico, que faz com que cada filme precise de uma paleta de cor distinta, com uma gama precisa de cores e tonalidades que tem uma função narrativa.
Pra ilustrar essa singularidade, utilizei algumas imagens do Movies in Color, que é um Tumblr que estuda especificamente as paletas de cores dos filmes.
Podemos ver nos três frames abaixo como as sensações mudam, mesmo que o gênero dos filmes sejam parecidos. Temos um drama criminal, um drama de época e um thriller, os três com atmosferas muito diferentes.

 

 

Um outro exemplo que gosto de usar (e já usei lá em cima) é o trabalho do diretor americano Wes Anderson. Por ter começado como designer, ele é muito atento à paleta de cores de cada obra que produz. Além de combiná-las com perfeição, percebe-se que nenhuma cor é escolhida por acaso. Tudo é muito bem planejado para reforçar a história.

Não é à toa que existem vários tumblrs e sites analisando as paletas do diretor.

 

Esse último frame do Grand Budapest Hotel me encanta muito pela força narrativa que ele tem. Em diversos momentos, ao vermos essas cores pastéis, os personagens estão bolando algum esquema para enganar oficiais ou seguranças. As cores em tom pastel que remetem a doces e infância acabam sendo vistas como “inocentes” nos olhos dos guardas e os personagens conseguem atingir seus objetivos.

Direção de fotografia

O diretor de fotografia, uma das funções mais importantes junto ao diretor, cuida para que tudo que foi produzido pela direção de arte apareça nas telas como o diretor imaginou. É ele o responsável pelas câmeras, lentes, enquadramentos, movimentos de câmera, iluminação, etc. Basicamente tudo que for filmado será responsabilidade do diretor de fotografia. É ele quem vai conduzir o olhar do espectador pelo espaço, personagens, objetos, e tudo que a direção de arte estruturou para que o filme acontecesse.
Esse vídeo explica bem como é a relação entre o diretor e o diretor de fotografia e aonde eles pretendem chegar com essa parceria. David Fincher, um dos meus diretores favoritos no que diz respeito a fotografia, é um cara que pensa cada plano e como ele vai conduzir as interpretações do espectador através da fotografia e da montagem.

Link Vimeo
As funções da fotografia no cinema são muito semelhantes às do departamento de arte. A diferença é que as construções de metáforas visuais, atmosferas, caracterização do personagem, relacionamentos com o espaço, alterações dos momentos do filme serão explorados de outra forma, na fotografia.
A própria abertura do Delicatessen que vimos acima nos ajuda a entender esse pensamento. Os movimentos de câmera, a luz desenhada com a neblina, os closes nas facas, todo o olhar que a fotografia está construindo nos leva a entender que estamos vendo uma cena de tensão. Nesse quesito, as lentes foram muito importantes também: se o personagem está aflito e querendo se esconder, a lente escolhida deforma mais o rosto dele, ou seja, já partimos do pressuposto de que o personagem não está em seu estado normal.
Além dos enquadramentos e movimentos de câmera, a iluminação tem importância indispensável na expressão visual do filme. Conseguimos deixar a cena mais dramática ou mais terna só pelo jeito que a iluminamos.
Ao invés de explicar em um texto, esse vídeo vai ajudar muito a entender por que iluminamos.

E onde a cor entra nisso tudo?

Ela é um dos principais fatores para criar os “moods” na cena, como o próprio vídeo acima menciona.
São esses “moods” que vão ajudar a dar o tom da história, nos deixar familiarizados com o que está por vir e nos “levar” para outro lugar.
Eu já expliquei no meu texto sobre fotografia um pouco sobre temperatura de cor. É justamente essa diferença de cor nas diferentes fontes luminosas que vai deixar um filme interessante ou não.
Sobre temperatura de cor no cinema eu peço para vocês não deixarem de ver esse vídeo. Ele ensina muito sobre nossas impressões sobre cor e como os cineastas as usam em seus filmes.

Link Vimeo
A escolha entre todos esses fatores vai do que o diretor quer com a fotografia do seu filme. Se queremos alguma fotografia mais naturalista, a tendência é que a iluminação tenha uma mistura de fontes luminosas. A fotografia da série Game of Thrones faz isso com muita delicadeza. Enquanto existe a luz de uma vela, de um tom mais amarelado, vemos a luz azulada vinda de uma janela, vinda da “lua”.

Agora, se queremos fazer um filme mais experimental, menos realista e com muita força na expressão visual, não existe limite para a cor da fonte luminosa.
Eu sou apaixonada pela fotografia do Only God Forgives justamente por conta disso. A linguagem desse filme ganha muito mais força pela fotografia ousada e sem medo de errar. Não existe muita sensação de volume em algumas cenas, em outras mal vemos os personagens e algumas até geram uma sensação incômoda. Tudo isso é resultado da intenção do diretor em buscar expressão através da fotografia.

 

 

 

 

Vendo os exemplos acima, percebe-se que o Only God Forgives é um filme com mais força expressiva na fotografia, enquanto os filmes do Wes Anderson tem muito mais atenção na direção de arte. Não existe modo certo ou errado de trabalhar cor no cinema, é tudo uma questão de autoria e experimentação. Se todos os filmes fossem iguais, não teria a mínima graça, certo?

Correção de cor

Chegamos à minha função favorita no cinema. Um colorista é um dos profissionais presentes na pós-produção, que é quando o filme inteiro já foi capturado e ele parte para as etapas de montagem, efeitos especiais, etc.
A correção de cor é um dos últimos processos pelo qual um filme vai passar, pois ela é feita quando a edição do filme está completa e aprovada, assim como grande parte de efeitos e outras intervenções na imagem. O colorista vai ser o profissional que, junto ao diretor e o diretor de fotografia, vai reforçar as mesmas intenções planejadas no começo da realização do filme.
O colorista possui algumas funções:

1) Igualar exposição e cor das câmeras

Hoje em dia muitos filmes e vídeos não são feitos com apenas uma câmera. Por conta da acessibilidade a vários equipamentos, e dependendo da verba, as gravações são feitas com câmeras muito distintas. Em situações como essa, cabe ao colorista igualar todas as estéticas das imagens para que haja uma unidade na obra e essa diferença técnica não incomode o público.
Existem situações, como em captações externas, nas quais a luz do dia pode mudar de repente. Esse é um problema que foge do controle da equipe de fotografia no momento da captura, sendo responsabilidade do colorista resolver essa mudança de exposição na pós.
A seguir vemos frames de uma cena onde existem planos com exposições diferentes e o colorista conseguiu dar uma unidade a todos.

Após resolver esse primeiro passo, o colorista também conseguiu aplicar um “look” nesses planos, ou seja, o filme ganhou uma atmosfera que já havia sido planejada pelo diretor. Nesse caso é um “look” amarelado, semelhante ao momento do pôr-do-sol.

2) Reforçar a atmosfera criada pela fotografia

Quando um diretor de fotografia elabora os planos e a iluminação, ele já tem em mente muito do resultado final do filme.
Contudo, sabendo que o material vai passar pelo processo de pós-produção, grande parte do bruto é gravado para que o colorista tenha “opções” na hora de reforçar a atmosfera planejada para uma cena específica ou para o filme como um todo.
Com isso em mente, o diretor de fotografia já sabe que precisará de bastante detalhes tanto nos tons escuros como nos claros, deixando para o diretor optar qual caminho seguir. Normalmente o colorista monta alguns “looks“, pesquisando a melhor maneira de reforçar aquela atmosfera criada pela fotografia. Depois disso é o diretor quem escolhe qual será a melhor opção para o resultado final.
Aqui tem um exemplo de um material bruto, mas com “looks” diferentes para criar atmosfera. O primeiro “look” é um pouco mais sério e denso, que se assemelha a filmes de guerra, enquanto que o segundo remete a um filme de época suave e o terceiro passa uma atmosfera mais romântica.
Com um mesmo plano foi possível criar três atmosferas distintas e que ajudam no processo de imersão do espectador na história que se quer contar.

3) Reforçar intenções narrativas e direcionar o olhar

O colorista pode reforçar as intenções narrativas seja na atmosfera, com os “looks” nos ajudando a contextualizar do que se trata a cena, ou seja direcionando o nosso olhar, nos mostrando qual o ponto que precisamos prestar atenção naquele quadro.
Já vimos que é possível dizer muito com a imagem, principalmente quando se cria uma atmosfera. Gosto desse exemplo da igreja onde podemos presenciar um pedido de casamento (em um look mais claro, com tons mais quentes) ou um assassinato (em um look mais escuro, com tons frios e mais sombras, nos escondendo o que está acontecendo):

O colorista também consegue reforçar os enquadramentos, usando técnicas para salientar ou esconder elementos no plano. Isso quer dizer que ele direciona o olhar do espectador para os pontos que precisam de mais atenção e também omite elementos que possam ser distrativos ou não possuem função narrativa.
Veja o exemplo a seguir. No bruto já vemos a menina e sabemos que ela é o elemento mais importante no plano. Contudo, no material corrigido nossa atenção se foca muito mais nela, sem os detalhes das paredes nos distraindo.

4) Correção de “erros”

Essa função é mais comum em vídeos do que no cinema. São alguns detalhes que dão errado no momento da captura e precisam ser ajustados na pós. Isso costuma acontecer em coberturas de eventos ou entrevistas, quando algum preset da câmera deu errado ou algum imprevisto no evento prejudicou a captação.
Nesse exemplo vemos um evento de motos em que o céu ficou nublado. Pensando nisso o colorista cuidou para que o dia parecesse ensolarado, afim de mostrar o ânimo do evento.

Já nesse exemplo percebemos que as configurações da câmera usada não foram ideais, o que resultou em um entrevistado laranja. Para isso, o colorista puxou tons mais frios afim de deixar o entrevistado com um tom de pele mais natural. Voltando também na questão de direcionar o olhar do espectador, percebemos que o colorista optou por colocar uma vinheta nos cantos do quadro afim de que a atenção se volte para o entrevistado.
 
5) Tratamentos finos como pele, luz, etc.
Assim como usamos o Photoshop para tratar peles em propagandas ou fazer algum tratamento fino, o colorista também é capaz de realizar esses tratamentos nos filmes. Esse trabalho detalhista é mais comum em publicidade ou moda, mas ainda assim pode ajudar a corrigir alguma imperfeição ou erro de maquiagem que possa ocorrer em uma cena.
Esse exemplo mostra um pouco de tratamento de pele e como algumas coisas podem fugir do nosso controle na hora da gravação. Como foi gravado em uma locação externa, a modelo do vídeo acabou ficando com frio no momento em que passou as mãos pela barriga, o que foi corrigido na pós.
 

6) Adequar o material para sua exibição

Cabe ao colorista também adequar o material para o tipo de plataforma em que ele será exibido. As especificações de material variam muito. O arquivo que vai para a TV é diferente daquele que se passa no cinema. É a parte mais técnica e uma das mais importantes do trabalho, pois é o momento em que a ocupação de todos é exposta. De quê adianta fazer todo esse esforço e ter o seu filme com alguma imperfeição ou erro na tela do cinema, certo?
Espero que esse texto tenha ajudado a entender um pouco mais sobre como funciona o processo da cor no cinema. Qualquer dúvida ou observação, deixa aqui nos comentários.
OBS: Os frames usados para exemplificar correções de cor são do vídeo “What is a colorist?“.


publicado em 01 de Abril de 2015, 15:55

File
Luiza de Castro
Amante de cor, cinema, fotografia, design, coletivos urbanos, muitas nerdices e fofurices. Adora aprender coisas novas, valoriza os amigos e pessoas queridas e sempre topa uma boa cerveja. É a videomaker e fotógrafa do PapodeHomem. Em breve, mais informações.
 
https://papodehomem.com.br/o-processo-criativo-da-cor-no-cinema/
 

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